#1 _ não é que Galliano seja talentoso, você é que estava carente
Ou: olha ali um eco do que não tem mais como acontecer.
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Por onde você anda esses dias?
Como foi seu Carnaval?
Onde você estava quando Galliano fez seu último desfile para a Margiela?
São perguntas que me vieram agora, entediado no avião. Estar a bordo em viagem longa é um daqueles momentos em que você ou dorme ou reflete. Eu já dormi. Neste momento, passo pela tríplice fronteira entre Gabão, Congo e Camarões. O destino final fica para uma próxima carta; considerando que eu chegue. Tenho ainda umas boas quinze horas de voo pela frente, o que me faz entrar naquele estado de suspensão entre fusos — o ar parado na cabine, um sentimento de que nada está se movendo, sem notícias nem estímulos lá de fora.
Daí que fiquei aqui pensando nestas últimas semanas em que não conversamos, no que veio acontecendo. E no Carnaval. O meu, este ano, não foi. Nem bom, nem ruim, apenas não. Um comichão me fez trocar o bloco de rua pelo banho de mangueira no quintal. E fiquei por isso, quieto em casa. Ano que vem, eu volto. Cada vez mais, zero FOMO.
E o que John Galliano tem a ver com tudo isso? Tá, não muita coisa. Mas em algum momento, durante o Carnaval, entrei num flash memorioso que me mostrou que fevereiro não é um bom mês para criadores excelentes. Alexander McQueen enforcou-se em plena quinta pré-Carnaval — lembro bem do frenesi na redação do Chic para escrever o obituário em choque; teríamos reunião de pauta logo em seguida. Claude Montana foi-se há nem uma semana. Karl Lagerfeld morreu em fevereiro (neste caso, o uso do “excelente” fica por sua escolha). Galliano foi sacado da Dior também no final do mês — mas, naquele ano, o Carnaval foi em março.
Daí que, aqueles dias, revisitei aquele desfile. E resolvi vê-lo novamente hoje, aproveitando que podia dar play no Maison-Margiela-Artisanal-Collection-2024.mp4, no computador, passeando sobre o Atlântico.
Não sei você, mas lembro-me bem onde estava quando a apresentação aconteceu. Guilherme estava de visita e, naquela hora, comprava incensos e castanhas do Pará para levar consigo de volta a Milão. Pequenos momentos de banzo do brasileiro expat. Enquanto ele se resolvia no caixa, abri as notificações e caí na live da Margiela — logo impactado por Leon Dame (♡) e sua cintura (ai ai) amarrada. Mostrei a tela para Gui e disse “ó, tá rolando Galliano hein”. Mas deixei o assunto para depois (zero FOMO) pois haviam outros planos; era feriado na cidade, ele tinha um jantar, eu precisava passar pela inauguração da loja da Misci nos Jardins e a República não é o melhor lugar para se assistir a um streaming.
Porém, com o pouco que vi ali, no link, já deu para sacar que havia algo. Não era um momento comum, mais um desfile, mais uma temporada. Tanto que (notei depois) disse “ó, tá rolando Galliano” e não “ó, tá rolando Margiela”. Nada de ato falho, pura descrição factual.
Galliano já provou que pode ser bem burro — vide aí os comentários antissemitas que fizeram a sua desgraça. Mas sabemos que, em comparação, é bem mais inteligente — e realmente talentoso. Asim como esperto o suficiente para passar uma década como diretor criativo da Margiela sem dar muita pinta. Na sua, trabalhando semi-anônimo (quase como Martin Margiela em si) e aproveitando o ateliê à disposição para reerguer sua moral gradualmente na casa nova.
Desde a sua estreia, vimos que o match (então, inesperado) daria certo. Ele seguiu revendo e exercitando os códigos todos da Margiela num caminho singular enquanto ia, aos poucos, infusionando os seus favoritismos próprios. De algumas temporadas para cá, diria que principalmente no pós-quarentena, veio o ponto de virada. As camadas galliânicas finalmente começaram a se sobrepor e o próprio começou a se pavonear um cadinho.
Este SS24 da Margiela Artisanal foi tão ápice quanto redenção. Não importa se você gosta da moda ou não. Eu mesmo nunca fui um grande fã desse mood bonecas de porcelana que Galliano venera e não supera desde a Dior. Preferências de lado, é o show perfeito. A trilha, o make viralizante da Pat McGrath, os movimentos absurdos de Pat Boguslawski, Brassaï. O mix de opulence & decadence, ponto em comum entre John e Martin. Foi um balé de conjunções e vontades que há muito não se via. O cenário, as fumaças, os ladinos de tabi e o mons púbis construídos fio a fio, pentelho a pentelho. Tudo certo. Épico. Épicoutoure. Aplausos.
É o tipo de show que, tivesse acontecido 20 anos antes, tornaria-se um daqueles momentos formadores do imaginário da moda. Hoje, fico curioso para saber o efeito, no distanciamento histórico. Alguns looks têm começado a aparecer nos tapetes vermelhos — num esforço semicaricato de colocar atrizes e cantoras para repetir o mise-en-place corporal da apresentação. Esses dias, Galliano recebeu a imprensa em Paris para um re-see dos looks em exposição, então o assunto está no ar. Mas vai ficar na memória hoje, época em que tudo é esquecido muito rápido?
Nesse show, aproveitando a carta branca total que tem na marca, ele fez uma ode àqueles tempos em que a moda podia ser moda. Em que o quiet luxury não tinha transformado todos os desfiles de Milão em sucursais da mesma ideia de produto. Em que processos e práticas não haviam sido atropelados por marketing e planilhas dos grandes conglomerados de luxo e os seus balancetes trimestrais. Em que alguns poucos conseguiam fazer vários muitos. O superlativo perdeu-se em algum momento no processo de democratização. E se você assistiu à série Balenciaga (como já deveria ter feito, pois bem boa), viu que esse drama não é de hoje. Só mudam os personagens, a velocidade e o tamanho do pepino.
Não pense que isto é um surto nostálgico, como as viúvas da moda e seus resmungos que “naquele tempo é que era bom”. Você conhece várias dessas, que eu sei. Não me inclua aí. Não tenho grandes saudades de nada. Mas reconheço que o símbolo é muito forte para ser ignorado. Dois deles, aliás.
O primeiro: é claro que Galliano chamaria atenção com uma apresentação assim, hoje. Estávamos carentes, você, eu, todos. Há quanto tempo não se via algo nesse nível, até mesmo na alta-costura? O mainstream tem muito desfile, muita roupa, muita semana de moda, muita informação — pouca história, pouco espírito, pouca boa vontade de ir contra pontos estabelecidos. Fica difícil se importar e vai-se nivelando por baixo para esperar o mínimo. Tudo tem o mesmo tempero, feito comida de avião.
Há pouco mais de um ano, entrevistei Angela Brito no seu ateliê, no centro do Rio de Janeiro, para a L’Officiel. Foram mais de quatro horas conversando. Não tenho as anotações aqui (no avião, risos) para referenciar, mas uma das reflexões que ela fez, e nem entrou no corte final, foi exatamente sobre louvar a mediocridade cultural (falávamos especificamente sobre moda, mas vale para qualquer área). Isso ficou na minha cabeça desde então. “As pessoas têm que tomar cuidado com o que aplaudem”, era mais ou menos essa a frase. A lógica era: se aplaudimos alguém sem saber o motivo, por manada, por política ou por falta de discernimento crítico, uma hora essa mediocridade que você alimentou logo volta para morder o seu rabo (oi, Demna!), afetando a tudo.
Ou seja, estávamos carentes, pois entramos todos na roda da indústria e passamos tanto tempo louvando histórias que nos deixaram no grande vazio do fashionismo insosso de possibilidades. E quanto surge algo visualmente interessante (oi, Schiaparelli), é rapidamente atropelado até restar apenas num board perdido no Pinterest, pois sabemos que daqui a pouco vem mais — e precisa vir mais, a velocidade é insaciável. Vimos acontecer lá fora, vimos acontecer também no Brasil.
Mas também não podemos colocar Galliano como o grande salvador do compasso da roda de samba. O show foi excelente, o auge do estilista desgarrado que volta cantarolaando “agora, eu não preciso do seu amor” (como estava na trilha), piteira entre os dedos. Em paralelo, é um talentoso passadista, fazendo-nos agarrar novamente à sedução de um cenário de prodígios que não existe mais — e nem existirá. Ápice e despedida de mãos dadas. Eu não me surpreenderia que esse fosse seu último desfile na Margiela, inclusive. Mas ele fez um balanço e um eco de um jeito de trabalhar que não é só de outrora, mas também (pelo menos no cenário atual) impossível de se retomar. Se isso é bom ou ruim, já é outra discussão.
Fato é que (e aqui vamos para o segundo símbolo) o grande segredo desse show não é a criatividade, o talento, o dinheiro, os amores estéticos, os amigos talentosos ou o dinheiro do Renzo Rosso — que foi muito esperto em apostar um cheque sem fundo no Galli em 2014, deixando-o trabalhar sem obrigações comerciais. Esta apresentação não foi feita em poucos meses, logo:
O grande segredo desse show é o tempo.
E o tempo é o maior privilégio do século.
Eu não tenho, você também não. Ninguém que vai desfilar no próximo SPFW, em abril, tem.
Mas nem vou começar a propor soluções pois essa carta já está imensa (e ninguém mais tem tempo para um texto desse tamanho).
e.
Continente africano, 01.03.24
Para um texto desse tamanho intelectual, arranjamos e temos todo tempo do mundo, Edu!