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Eu já te contei que me fascina a imagem de um mamão esmigalhado? Mamões de qualquer tipo — mas não nego que meu favorito talvez seja o Formosa. Provavelmente por ser mais bojudo, carrega ali um drama naturalmente maximalista.
Veja, não me refiro à fruta amassadinha no café da manhã de novela, flocos de aveia, mel silvestre e tal. Pense em um mamão que se espatifou na sarjeta a partir de uma altura razoável, o impacto abrindo-lhe o ventre maduro à força. Me fascina.
Visualize aquele laranja de alta saturação brilhando ao sol, as sementes mil miúdas rolando para fora, pretinhas pretinhas. Me fascina.
Isso sem falar no cheiro tropical, ai, fermentando no asfalto.
This may become a very erotic exercise — disse ali o Bruce Nauman, há exatos 50 anos, reproduzido na parede da minha cozinha, de onde te escrevo hoje. Esta cozinha talvez tenha 50 anos também, pensando bem (vou tentar lembrar de perguntar para a imobiliária).
A carreira do Zeca Pagodinho, em comparação, acabei de ver na notificação do e-mail, tem 40. Diz que vai rolar um show especial mais tarde em Engenho de Dentro. Que coisa, não sabia.
Mas, sim: digressiono.
Sabe, tenho uma relação de amor e horror com o ato de escrever. Um péssimo sentimento para alguém que trabalha com isso, fatos. Invejo quem diz que jorra textos com facilidade (sorrio e concordo, mas, secretamente, me asseguro que é pura lorota). Suo frio com as páginas em branco do processador de texto. O pisca-pisca do cursor provavelmente seria assunto de terapia (se eu fizesse terapia).
Não é que eu não goste de escrever, veja. Trocar palavras de lugar, reinventar ritmos, construir frases, meter ali um segredinho irônico que só duas ou três pessoas (das oito ou nove que ainda realmente leem) vão perceber. Isso, sim, AMO. Duro é… começar.
(Curiosamente, acho que escrevo melhor quando estou com fome. Assim como meus melhores parágrafos surgem durante longas caminhadas)
Em paralelo, eu escrevo muitas… cartas. Isso é algo que você provavelmente não sabe. Assim como o mamão arruinado na sarjeta, cartas me fascinam, de certa forma. Não e-mails; cartas mesmo, papel, envelope, garranchos viajantes no sistema postal.
Talvez por ter uma certa memória afetiva, talvez por um peso formal na comunicação que me atrai, não sei. Talvez por elas representarem uma pausa possível na conversa frenética pouco linear de kkks variados (o nome Calma. não veio à toa). Ou talvez por um exercício de abdicar da possibilidade de editar uma mensagem infinitamente — o que foi fisicamente postado, está posto.
Veja lá, eu as escrevo com certa facilidade. E razoável frequência. Se você é (ou foi) meu amigue, familiar, amante, provavelmente já ganhou pelo menos uma nos últimos anos. Talvez curtinha, bobinha, anedótica; talvez seriíssima, de páginas a fio.
E provavelmente não sabe disso, pois, ironicamente, elas raramente são enviadas. Consigo contar nos dedos da memória as poucas vezes que elas foram para o mundo recentemente (em uma das últimas, o desafortunado ganhou dez páginas no colo). Eu disse que gosto de escrevê-las, não de que elas sejam lidas. Todas são eventualmente deletadas, esquecidas ou literalmente queimadas. Sim, sim, é outro assunto para uma eventual terapia.
(Não pense que meu coração é de papel, acabou de cantar o Zeca ali no streaming enquanto escrevo aqui. Tem a ver.)
(A Beth Carvalho era muito bonita, né?)
TUDO ISSO para dizer que, bom, isto aqui é um repositório de cartas. E estas serão enviadas. Sim, é uma newsletter — mas eu acho chamar newsletter de newsletter um pouco cafona, amigues com as suas que me desculpem.
É um braço a mais do Calma. (vai voltar, juro) para exercitar pensamentos soltos, desovar contemplações menos formais do que um texto imenso sobre um único tema. Vou falar sobre moda, sim, já que desconfio que você tenha vindo parar aqui por isso - mas (credo) não só sobre isso. O mundo é muito maior do que a semiótica do último desfile da Prada, não nos fixemos a uma pauta só. E moda é tão mais do que roupa, é tudo e também é nada.
(De repente, Marcelo D2 usando Comme des Garçons para cantar com o Zeca Pagodinho. Greta Garbo no Irajá, Rei Kawakubo no Engenhão)
(Inclusive: 1986 é o ano de lançamento do primeiro disco do Zeca. Ele tinha 27 e a capa poderia facilmente ser campanha de marca de streetwear da ZO paulistana em 2024. E o primeiro verso da primeira faixa é “precisei de roupa nova”. Tá aí. Moda.)
Mas, voltando, é isso.
Sei lá, deu vontade.
Assine aí, se der também.
Beijos,
e.
São Paulo, 4.2.24
Amei seus conflitos e reflexões diante da página em branco e sua paixão revelada por escrever cartas, entre mamões mortos e relâmpagos sobre pagodes e grifes. Chic, intenso, extremo. I love.